"Suponho que me entender não seja uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca" (Clarice Lispector). Isso poderia ser dito de mim... ou da própria arte, literatura... poesia!
A Sacerdotisa da Lua e o Homem-Lobo ou a Lenda da Superlua
Ela
chegou vestida de luar*. A pele branca refletia a luz intensa daquele
luar exuberante, extraordinariamente mais forte, mais intenso e maior
em noites como aquela. Ela tinha também uma leve penugem prateada,
reluzente, típica daquelas de sua espécie. O cabelo escuro
contrastava com a pele clara, longo, macio e esvoaçante como suas
roupas. Tinha porte, caminhava firme e olhava adiante, acima de todo
o resto. Parecia ser Ela a uivar no alto e à beira daquele imenso
penhasco, mas estava apenas observando todo o Vale do Loire (como
era conhecida aquela região) e o fenômeno da Superlua que a atraíra
até ali, como se a hipnotizasse.
Mas
não era exatamente a silhueta contra a lua e a presença, ou mesmo o
porte, daquela mulher que o perturbava. Não era isso. Era o cheiro.
O cheiro de presa, de fertilidade, que o atraíra até ali, para além
da Lua. Era também para isso que estava ali, hoje como em todos os
outros anos, mesmo que ainda não tivesse ido até o final, e como
muitos antes dele. Mas havia algo mais, havia uma estranheza naquela
quietude que o eriçava e percorria a espinha tal qual pequenos
fenômenos de estática. Havia uma estranha eletricidade no ar. Algo
parecia estranhamente... diferente...
***
Mesmo
sem olhar Ela notara a presença dele. Mais um e com esse também não
seria diferente. Ela poderia ser punida por aquilo, por violar as
regras que lhe haviam sido impostas e a muitas antes dela, mas era
diferente e pagaria o preço. Um já fora, não se submeteria assim.
Estava pronta e aquela lua, a mesma que a fascinara desde sempre,
estranhamente, era aquela mesma lua que a tornava forte assim.
Estranhamente forte e decidida...
***
Enquanto
chegava mais perto, Ele sentia os seus instintos aflorarem ainda
mais. Era o cheiro que fazia isso, Ele sabia. E a Lua, claro. Havia
uma energia, uma ferocidade, uma suscetibilidade extrema ao cheiro,
ao som, ao tato... Era tão fácil se entregar àquilo e fazer o que
precisava fazer, obtendo aquele insano e incomensurável prazer
animal, tão natural quanto instintivo, mas, e isso também era
estranho, como tudo o mais naquela noite, naquele momento, naquele
particular momento na história de uma tradição muito, muito
antiga, Ele nunca conseguiu se entregar plenamente àquela
irracionalidade-racional quase científica. Talvez Ele fosse o único
a ter consciência de sua Natureza, mas será que poderia
controlá-la? Não, era difícil demais, seria impossível naquela
noite!
Olhava
para as suas mãos enormes, para aquelas garras, pensava por alguns
segundos em seu tamanho, em seu peso, em sua força e na fragilidade
daquela criatura... algo parecia não ser harmônico... não parecia
encaixar-se... para quê tudo aquilo? Mas, mesmo com todas essas
dúvidas, que surgiam, agora, cada vez como mais breves lampejos de
lucidez, era compelido a avançar, sobretudo porque, à medida que
aquela imensa bola branca avançava pelo céu, os instintos
dominavam-lhe... era a sua natureza mais que animal, posto que animal
já era, dominando-lhe... E estava cada vez mais perto.
***
Ela
sabia que Ele estava chegando. Sentiu o coração acelerar e respirou
fundo, limpou a mente e teve a certeza de que não era medo o
sentimento crescente que se apossava dela, era a adrenalina de outro
movimento iminente. As feridas ainda sangravam e ardiam, mas havia
uma força crescente ali, que Ela sentia em cada músculo, em cada
parte do corpo, mesmo na ponta dos dedos, pronta para ser usada.
Já
podia ouvir a respiração dele, os passos pesados, cada vez mais
próximos, cerrou os punhos e quando o ar ao redor tremulou bem perto
dela, virou-se, Ela, sim, como nunca antes, com a sua própria
ferocidade gritando dos olhos: você não me dominará!
***
Foi
quando os olhos deles se encontraram. Um verdadeiro choque, cuja
eletricidade parecia quase poder ser vista ou sentida. Ela e Ele,
frente à frente, Mulher e Lobo. (Bela) Donzela e Fera. Priestess
and Werewolf. Sacerdos et Profanus. Deusa e Demônio.
O
olhar se sustentou agressivamente, ora instável, ora firmemente. E
isso os fez estagnar, embora ambos estivessem prontos para o ataque,
rodeando-se, em posição, defensivos e reativos.
***
Em
frações de segundos, diversos pensamentos passaram pela mente Dela.
Lembrou do porquê de estar ali, reviveu o momento em que a maldição
fora lançada sobre aquelas duas raças, sujeitando as mulheres da
espécie dela aos homens insaciáveis da espécie dele em dias de Lua
Cheia e, mais ainda, de Superlua. Mulheres que sofreriam com uma
sensibilidade extrema por toda a vida, cujo maior propósito seria
levá-las a subjugar-se naquele momento. Homens como Ele, de uma raça
inteligentíssima, sempre racionais, sujeitos àquele momento da mais
animalesca irracionalidade inferiorizante. Lembrou de como fora
ensinada e preparada para aceitar aquele momento. Lembrou de como via
cada mulher voltar daquela noite destruída e, enquanto todas as
olhavam com orgulho, Ela nunca conseguira compreender o que explica
tamanha violência e aceitação... em todos os sentidos. Como podia
aquela mesma Lua tão maravilhosa que a encantava ter sido usada como
mote para aquela monstruosidade? Para encantar aquelas Mulheres e
aqueles Homens e levá-los até ali? Mulheres Sacerdotisas da Lua e
Homens-Feras, Bestializados... Eternamente amaldiçoados, vítimas de
seus destinos irreversíveis.
E
naquela noite chegara a sua vez. Tivera que ir, não resistira ao
chamado da Lua e fora. Mas, surpreendentemente, lutara e saíra
vitoriosa do primeiro ataque. Ataque, sim, era o nome daquilo!
Mulheres de sua espécie gostavam de nomes bonitos, falavam em
acasalamento, amor, paixão, encantamento. Para Ela, aquilo não
poderia ter outro nome, senão um grande e covarde ataque. Ainda bem
que levara consigo a adaga das iniciadas. Maculara a arma sagrada,
mas não houvera outro jeito. E tudo sob aquela grande Lua
testemunha. E com aquele ali... se vencera um, venceria aquele
também. Poderia ser expulsa e condenada à morte, mas não se
sujeitaria.
***
Ele
estava agitado. Uma agitação diferente da agitação instintiva
sobre a qual aprendera. Não estava certo o que estava acontecendo
ali. Não fora assim que aprendera. Por que aquela criatura estava
com as feições tão duras, reativas, e em posição de ataque? Ele
é quem deveria atacar e Ela assustar-se e deixar-se dominar! E que
força era aquela que conseguia refreá-lo, emanando apenas daqueles
olhos profundos e vivos? Era uma belíssima criatura, de formas
simples, mas de um magnetismo tremendo. Porém, isso Ele já notara
desde antes; o que não notara e só agora reparava é que Ela tinha
uma pequena arma na mão, suas roupas estavam rasgadas e Ela estava
ferida... Mas julgava poder enfrentá-lo? Ele que era uma cabeça e
meia maior que Ela, muito mais forte e cuja compleição física o
habilitava especificamente para atacar criaturas muito maiores e mais
ameaçadoras que aquela frágil pequenina?
Esses
pensamentos iam e vinham, mas já estavam perdendo a sequência
lógica, a irracionalidade dominava-lhe, os olhos ardiam num
vermelho-brasa, o cheiro dela dominava-lhe a mente, mostrava os
dentes, salivava, queria possuí-la e a teria de qualquer jeito. Por
que Ela não facilitava as coisas para não se machucar tanto? E por
que se preocupava com Ela?! Estava perdendo a paciência. Não tinha
como dominar seus instintos... ainda que alguma coisa, alguma coisa
naqueles olhos...
***
Os
olhos dele eram irracionais, mas por isso Ela já esperava. Atacaria.
Mas Ele parecia maior que o outro e isso a estava segurando durante
aqueles segundos que já viravam minutos. Percebia a mudança e a
perturbação que seu cheiro causava nele e, logo, logo, seria tarde
demais. Por que não conseguia avançar? Com o outro fora tão mais
fácil... mas havia algo... naqueles olhos... mesmo vermelhos e
ameaçadores... havia algo naqueles olhos...
***
Foram
os olhos. Foi aquele olhar que durou uma eternidade. E aqueles dois
eram a prova viva de como os olhos são, sim, em qualquer situação,
a janela (e o espelho) da alma. Aquelas Mulheres-Sacerdotisas e
aqueles Homens-Feras jamais se olhavam firmemente nos olhos. Estes
não se encontravam nunca, porque Elas os baixavam e Eles olhavam,
mas não as viam, enxergavam apenas o que elas ali representavam, uma
fêmea, uma caça, uma carne macia de cheiro apetitoso.
Mas
Eles se olharam e, naquela situação completamente diversa do
planejado, durante aqueles segundos-minutos-eternidades,
mergulharam-se.
Ele
viu a força dela, a coragem, a luta, a insubordinação, o medo
unido firmemente ao poder que dela emanava.
Ela
viu as incertezas dele, a luta contra o irracional, o apreço pela
pessoa dela, não pelo que representava.
Ele
sentiu vontade de compreendê-la e agir diferente.
Ela
sentiu vontade de ceder a Ele, nem que fosse para se deixar
compreender. Ninguém, jamais, o havia conseguido, sequer tentado ou
imaginado precisá-lo.
Ela
baixou a lâmina por um momento, porque os olhos dele pareciam
diferentes, pareciam mais humanos do que selvagens. Ele acreditava
que aquele ato marcado e repetido há tantos anos não deveria ser
natural ou instintivo, só não imaginava ter forças para
controlar-se e Ela, como controlara a si, sabia ser possível e
disse-lhe com os olhos, transmitiu-lhe força, confiança e baixou a
lâmina.
Ele
sentia os impulsos, sentia-se em chamas. A cabeça latejava, o
raciocínio falhava, mas Ele, o que havia mais dele que poderia
haver, ainda estava ali e era a isso que se apegava. Estava fascinado
pelo poder e encanto que aquela criatura emanava. Estava inebriado por aqueles olhos e para dentro deles queria jogar-se, lá parecia
haver tantas respostas, certezas e segurança...
Estava
em luta consigo mesmo. Tentando dominar-se, não poderia era desviar
daquele olhar, sabia, tinha certeza, que, se assim o fizesse,
perderia para si, para a Fera em si, no mesmo instante.
Ela
já havia abaixado a lâmina e agora, espere, estava atacando, não,
não poderia ser... não... estava... estava se aproximando?
***
Ela
não sabia o que mais fazer para dar coragem e força a Ele contra si
próprio. Sabia que estava em luta e queria ajudar. Mas como fazê-lo?
Foi
então que, decida, mesmo com um algum receio, pois o passo seria
fatal, aproximou-se, estendeu a mão e tocou-lhe o braço.
***
Ele
uivou feroz e profundamente, porque uma energia imensa percorreu seu
corpo, causando uma dor insuportável. Puxou o braço, mas Ela o
segurou firme. Assustara-se, mas venceu o medo e tomou as duas mãos
dele, forçando-lhe a olhar para Ela novamente e Ele conseguiu.
Estavam
de mãos dadas, a Mulher e a Fera.
Então,
uma grande mudança começou a operar. Os olhos dele eram humanos,
estavam limpos e olhavam para os dela, com um brilho úmido de
gratidão.
Era
Ele que estava ali, não a Fera.
Ele
se viu, aos poucos, mais perto dela, o que estava acontecendo? Estava
ficando mais baixo, olhou para as mãos e viu os pelos diminuindo, as
garras sumindo e suas formas humanas, era humano e já quase não se
lembrava, voltando.
Ele
era humano, apenas um homem, e Ela, uma deusa, apenas uma mulher.
Ele
vencera e Ela... vencera muito mais que uma luta animal.
Ela
estava diante de um homem, não de uma Fera.
Quando
mergulhara nela, Ele acessara sua alma, não a lera, mas tivera
vislumbres maravilhosos. Ela também. Admiravam-se. E, acima de tudo,
respeitavam-se.
Não
perceberam, mas após toda a transformação que se operou nele (e
nela, porque jamais seria a mesma), ainda estavam de mãos dadas e a
eletricidade incômoda dissipara-se. Era uma noite brilhante,
silenciosa, de céu claro e limpo e agora... acalentadora e
reconfortante. Um convite.
Abraçaram-se
longamente. O corpo nu dele reagindo ao contato com o dela, ainda que
através dos retalhos que ainda a recobriam. A Ela, as feridas não
incomodavam, o corpo não doía mais. O sangue esfriava e estancava.
O coração palpitava, mas num ritmo compassado, quase música.
Ele
a tomou pela mão e a levou até uma pequena gruta onde estivera
aguardando, nos últimos dias. Havia um cheiro forte de almíscar e
canela que Ele usava para concentrar-se nas leituras e reflexões
ainda lá dentro e uma palha recém-colhida que lhe serviria de cama
quando retornasse. Ele a pegou no colo e a pôs ali. Buscou um pedaço
de pano embebido em ervas para lavar-lhe as feridas. Sem perguntas,
não havia necessidade. Ele a limpou e tratou e Ela não fez nenhum
movimento para impedi-lo, confiaria a sua vida, agora, àquele
encantador estranho.
Quando
já estava quase acabando de limpá-la, curvado sobre Ela, Ela
aproximou-se e o beijou e foi um beijo longo que significou apenas o
prelúdio de uma noite maravilhosa de completude.
O
fruto daquela união ímpar estava plantado e semearia...
***
Mas
o destino não foi para sempre feliz para aquele casal, porque isso é
uma lenda muito, muito antiga, uma história que um dia foi real, com
pequenos acréscimos aqui e ali, mas não um conto de fadas...
O
casal fugiu para que não a encontrassem e a punissem com uma morte
lenta, sofrida e dolorosa em razão do assassinato que cometera
naquela noite, quebrando anos e anos de acordos e tradições e
maldições. Houve fúria, guerras e mortes, deixadas para trás,
mas, naqueles tempos de magia e trevas isso era mesmo muito comum.
Ocorre
que as feridas dela deixaram marcas profundas, marcas que a medicina
das ervas não curavam, marcas de uma magia muito antiga e, pouco
tempo depois que o quinto dos filhos deles desmamava, Ela se foi.
Ele
ficou inconsolável, nunca mais teve outra e essa tristeza o consumiu
por toda a vida. Dizem que morreu de amargura. Dos filhos, não se
sabe ao certo, mas o sangue forte dele e dela não se esvaneceria
assim.
E
é por isso que hoje ainda se acredita na mística do fenômeno da
Superlua e no seu poder não mais destrutivo, mas de operar
grandes milagres de compreensão e encontro de almas.
É
uma noite como não há igual. E os descendentes da Sacerdotisa da
Lua e do Homem-Lobo ainda caminham por aí... em algum lugar...
carregando consigo esperanças ainda que o fenômeno perdure, apenas
tenha assumido outras formas, e a maioria dos homens e das mulheres
guardem um pouco da antiga tradição em si. Mesmo com toda essa
mudança dos tempos, mesmo que em corpos trocados e tudo o mais...
É
o que dizem... e é você que escolhe em quê acreditar... ou não...
São
os contos do Werewolf...
Salvador,
24 de junho de 2013
Carolina
Grant
*De
luar, não de lua, porque “vestida de lua” teria um sentido
completamente diferente.
Foi quando a última folha de Outono caiu
que todas as Estações se reuniram,
naquela memorável ocasião.
O pequenino Primavera fazia as suas graças de criança.
Os jovens do Verão resplandeciam...
em sua mocidade de sonhos, promessas e esperança.
Havia, também, o olhar já nostálgico,
os silêncios repletos de reticências e, claro,
as piadas ácidas do recém anfitrião Outono,
em suas representantes.
Mas foi o Inverno quem nos acolheu,
no aconchego de suas histórias e lembranças,
entre fotos, quadros, cartas, lágrimas e afagos (n'alma)...
E lá, no meio daquele grande encontro, estava Eu,
pairando ouvinte-espectador atemporal.
Dizem que durou uma semana.
Mas há quem diga, também, que durou meses, anos ou apenas algumas horas.
Dizem que foi por essa razão que houve sol no inverno e flores desabrocharam mesmo enquanto folhas ainda caíam...
Dizem tanta coisa...
Mas uma delas certamente aconteceu e foi/seria lembrada para sempre.
Foi nessa ocasião que o Passado foi (re)escrito, o Futuro (re)inventado e o Presente... (ah... que presente!)... este duraria uma Eternidade...
O
fim de uma jornada – Em cacos, gotas e estilhaços
Acordara
de forma estranha naquela manhã cinzenta de domingo.
Algo
parecia ilusório e onírico, embora o branco das manhãs de chumbo
incomodasse-lhe os olhos e lhe trouxesse fragmentos indesejados de
realidade.
Acordara
oca. Algo faltava.
Quebrara.
Levantou
com aquela estranha (não deveria já ser confortável?) sensação
de incompletude e foi ao levantar da cama que percebeu.
Esvaíra-se
em cacos.
Estilhaçara-se.
O
sangue escuro brotava, porque ferira-se com os seus próprios cacos.
Acordara
em pedaços, cacos de si espalhados por todos os cantos do quarto,
ferindo-lhe os pés, as mãos, os sonhos e a esperança.
Olhou
para o peito oco ao espelho. Impossível reconstruí-lo.
Olhou
para os olhos opacos. Impossível lubrificá-los, sorri-los ou
resgatar-lhes o brilho.
E
a cada minuto mais um pedaço da ilusão que construíra de si, mais
um pedaço de tudo o que era ruía e estilhaçava-se ao chão.
Era
(ou poderia ser) uma Mulher aos pedaços. Um poço de sentimentos
cristalizados e estilhaçados.
Um
vazio de sonhos e sentimentos.
Uma
opacidade imensa.
Um
abismo próprio.
Uma
caminhante em fim de jornada.
E,
caminhante que era, caminhou por entre os cacos. Deixou-se ferir a
cada lembrança.
Admirou
os mais brilhantes, pedaços de sonhos reluzentes.
Não
evitou os mais sombrios, cortantes e pontiagudos. Foram eles, também,
que a constituíram e levaram-na a brilhar até a noite passada,
quando atingira o auge de sua existência.
Todos
aqueles pedaços tinham o seu valor.
Um valor inestimável.
Foi,
aos poucos, juntando um a um.
Cada
um que caía era cuidadosamente coletado e colocado, gentilmente,
numa caixa de veludo escuro.
Levou
todos consigo para a banheira.
Sentou-se,
confortavelmente, com a caixa no colo.
As
feridas já não lhe incomodavam. Fizeram parte de toda a sua
existência e não lhe impediram de sorrir e brilhar.
Ali
haveria espaço para que se despedaçasse sem perder nenhuma parte do
que fora.
E
então o pedaço mais luzidio de todos, o mais belo, mais bem
talhado, de material nobre e resistente, afiado como um punhal, belo
como o último ocaso de uma vida plena, cedeu...
Ela
o pegou, o olhou e admirou... ele ainda pulsava, mas ficava mais
lento a cada instante.
Aquele
caco pulsante valera-lhe a Vida.
E
foi em lágrimas cristalizadas que, abraçada àquele melhor pedaço
de si, ela se despediu... numa manhã cinzenta, mas inebriante em seu
branco pálido manchado de púrpura.