Crônicas de um Andarilho
E ele pegou um pouco do nada material que tinha e um muito de coisas
todas que queria e caiu na estrada da vida de maneira que ninguém
poderia detê-lo ou deter-se diante de tamanha vontade de mundo, de
chão, de terra, de estrada... um violão seria sua eterna companhia
e a porta para onde queria chegar... a terra de ninguém dos corações
humanos...
A última vez que o vi, estava sentado debaixo de um velho carvalho,
rodeado de olhares distantes, e sua voz macia e experiente enchia o
ar de conhecimentos muitos da lida do dia-a-dia... os seus trapos
vestidos mistificavam sua figura velada... e essa só aparecia nos
olhos aguçados e míopes por trás de lentes velhas...
Eu quis segui-lo um dia, mas a sua vida era a incerteza e sua
cúmplice a liberdade... seu trajeto... caminhos infinitos, becos sem
saída talvez (o que importa se pode-se dar a volta e seguir em
frente)... e nas suas idas e voltas nas voltas do tempo... ele
parava com toda a calma dos séculos e sentava em cada esquina da
vida para tocar as suas viagens em letras de músicas melodiosas e
envolventes como as ondas de um mar aberto... tantos passavam e
poucos olhavam... mas, se ao menos um jovem ou um velho ou um homem
ou a moça dos pãezinhos de queijo e o companheiro que com ele
dividia o banco da praça mais próxima parasse para escutar um pouco
as palavras daquele louco viajante... ah...ninguém nunca entenderia
aquele sorriso enviesado, tão sincero e simples... eterno enigma aos
olhos todos...
...Ele gentilmente tirava o chapéu e não aceitava nada mais que um
sorriso recíproco, tão simples e encoberto de histórias muitas que
nunca seriam entendidas a não ser por quem as vivia assim de bem
perto...
Quiseram prendê-lo, quiseram matá-lo, quiseram amá-lo, mas se há
algo mais fluido que o tempo e onipresente que a vida... era o
andarilho e suas canções enigmáticas que, dizem por aí, continha
os segredos da felicidade, da plenitude do nirvana, da vida eterna ou
de como arrancar um sorriso sincero de pessoas humildes que se deixam
sentir ou não... ou não... Dizem que ele já salvou mais almas dos
que as que cabem no céu... dizem que sua música emocionou os deuses
e fez o céu chorar lágrimas de chuva mais de algumas vezes... dizem
tanta coisa... mas não dizem quem era o andarilho e onde ele está
agora porque está no sempre e no mundo... uma vez o vi, e por um
instante breve e fugaz, olhei em seus olhos e compreendi...
compreendi o que o levara a viver sua vida nas vidas todas... ele
acreditava e tinha um sonho maior que os nossos... um sonho de
séculos... um sonho de humanidade... um sonho de ser humano
um dia de verdade se Deus o permitisse... e até lá viveria como um
simples aprendiz, digo andarilho... tentando aprender e apreender o
que era vida e tentando percorrer todos quanto pudesse os seus
caminhos...
Uma vez eu o vi e ele tocou para mim a canção que agora conto a
vocês, a história de um andarilho comum e suas viagens... Mas isso
foi há muito, muito tempo, no tempo em que havia sonhos que levavam
as pessoas a segui-los... no tempo em que havia ainda andarilhos e
pessoas a ouvi-los em suas anedotas, metáforas de vida viajante...
GRANT, Carolina . Crônicas de um Andarilho. Jornal VERSUS, Faculdade de Direito da UFBA, p. 02 - 02,
10 mar. 2008.