Fragmentos de Natal
ou...
Pedacinhos de coisas brilhantes
interiores que a gente só vê nessa época do ano espalhadas por aí
Foi então que a garotinha de
olhos graúdos e inquietantemente perspicazes tomou coragem e foi
falar com ele. Ela já o vinha observando há algum tempo, do seu
canto favorito da sala, perto da árvore toda decorada e do gato
gorducho de pelo fofinho da Tia Clara, perguntando-se se deveria ou
não abordá-lo do seu jeito costumeiro de fazer perguntas certeiras.
Já estava ficando cansada, também, de fazer as vontades do velho
Rabicho, eternamente ronronante por carícias, sobretudo de uma
mãozinha pequena, macia e delicada com a dela, e precisava
entreter-se com outra coisa, além, é claro, de acompanhar tudo e
todos à sua volta nos mínimos detalhes (!) E, é preciso registrar,
ela sabia (não havia a menor dúvida nesse sentido) que ele teria
uma resposta legal. Ele era o único que parecia realmente estar
participando daquilo tudo da mesma forma que ela. Ou seja,
completamente deslocados no meio de tantas pernas, luzes, vozes e
pessoas grandes, mas absolutamente absorvidos com o que observavam e
com o clima daquele momento-lugar. Foi o sorriso aberto, sincero e
seguro dele, mais para si mesmo que para qualquer pessoa, de quem
tudo sabe e percebe, que lhe deu confiança para ir até lá.
Falariam a mesma língua.
Ela atravessou o Salão (não era
assim uma sala tão grande, mas, quando você tem cinco anos e um
metro de altura, bom, você também foi criança e sabe que o mundo
torna-se muito maior do que realmente é). Esquivou-se aqui e ali dos
garçons, que mal a enxergavam passar por entre as suas pernas,
passou por cima de uma ou outra cadeira para cortar caminho (não sem
alguma dificuldade, mas isso tudo tornava a coisa ainda mais
divertida, roubando um sorriso maroto daquela carinha redonda e
divertida).
Ele estava onde parecia estar
sempre, na porta da varanda, na linha tênue entre o estar fora e o
estar dentro, no lugar e no ângulo perfeito para um bom e experiente
observador, encostado na pilastra, displicentemente, como se tivesse estado ali desde sempre, só sendo percebido, quase sem
querer, quando alguém chegava muito perto. Confundia-se com o
ambiente, mas, ao mesmo tempo, parecia garantir-lhe um equilíbrio
invisível.
Ela chegou de mancinho,
acomodou-se em uma mesinha baixa ao lado dele e lançou a sua
pergunta a queima-roupa, sem o menor pudor: – O que você gosta no
Natal?
Ele deu uma baforada e apagou o
cigarro para falar com a garotinha, com a tranquilidade e o semblante
sério, ainda que sereno, de quem pondera seriamente sobre uma
pergunta muito, muito importante. Colocou as mãos no bolso da calça
jeans, olhou para algum ponto abstrato à sua frente, depois para
baixo e novamente para aquele mesmo ponto e respondeu com o conforto
e a intimidade de quem já conhecia aquela garotinha há bastante
tempo e sem nenhum traço de que fora surpreendido pela pergunta
inesperada, vinda de uma interrogadora ainda mais inesperada...
– Gosto dos sorrisos
furtivos... que a gente pesca por aí justamente nessa época...
desses que saem quase sem querer, porque a pessoa não consegue nem
segurar – disse, por fim, desmanchando toda aquela seriedade
reflexiva no seu bom e velho sorriso largo e sincero, daqueles que
dão um abraço capaz de acolher o mundo inteiro, agora olhando
diretamente para a criaturinha ao seu lado.
– Por que você gosta tanto
deles? – devolveu a garotinha, com um brilho nos olhos de quem
confirmava a certeza que a conduzira até ali e estava decidida a
seguir na conversa.
– Bom... porque são como
pontinhos de luz, sabe? Que se espalham por aí e vão meio que
contagiando todas as pessoas – ele fez uma pequena pausa enquanto a
garotinha avaliava aquela resposta e foi a vez dele de devolver a
pergunta: – E você? O que você mais gosta?
Ela já podia imaginar aquela
pergunta. Estavam conversando como iguais e nada mais natural do que
o fato de ele querer ouvi-la, também, sobre a mesma questão,
naturalmente.
– Eu gosto desses pontinhos
também... Na verdade, gosto de todos os pontinhos de luz do Natal,
desses que as pessoas espalham pelas casas e pelas ruas, desses que
brilham no rosto delas e que brilham delas mesmas... sei lá... todos
esses pontinhos de luz me fazem ver estrelas em mim, mesmo quando
fecho os olhos e mesmo quando tudo o mais é escuro... e então tudo
parece tão... bom... – e sorriu o seu melhor sorriso para ele.
Ele sorriu de volta e a
compreensão era perfeita.
Eles voltaram a atenção, então,
os dois, para o passatempo preferido de ambos: aquele maravilhoso
universo humano à sua frente e simplesmente... todas as coisas.
Olhavam o mundo com os mesmos olhos, ainda que com histórias
completamente diferentes.
A Garotinha de cinco anos e o
Andarilho (cuja idade nós nunca conseguimos identificar bem ao
certo, porque parece ter eternamente uns trinta e cinco e, ao mesmo
tempo, a idade do universo) formavam um par bem curioso, sentados no
tampo de uma mesa baixa, no meio de uma festa de Natal, completamente
imersos e, ao mesmo tempo, alheios àquele mundo, envoltos, ainda, em
um diálogo falado ou mudo extremamente interessante. Eram eternos
admiradores dos fragmentos mundanos, natalinos ou... simplesmente...,
para falar na linguagem deles, dos pedacinhos
de coisas brilhantes interiores que a gente só vê nessa época do
ano espalhadas por aí...
Salvador, 12 de dezembro de 2012.
Carolina Grant