domingo, 23 de janeiro de 2011

Mulher na praia... (ou “Palavras ao vento...”).


Mulher na praia... (Ou “Palavras ao vento...”)

Sentada à beira-mar,
vagava e divagava com os olhos.
Em seu traje exótico,
chapéu nostálgico (anos 20),
óculos escuro-máscaras,
perdia-se no infinito ir e vir
branco de espumas e sal.

Lia Neruda...
Lia o mar em palavras,
e ouvia Neruda em ondas.
O sol queimava a pele virgem,
como a paixão queimara o coração inóspito.
Tinha as memórias em fotos ao colo...
Tinha as lembranças vivas nos olhos.

O vento parecia empurrar-lhe...
Quisera tomar-lhe algo?

Conseguira.

Em uma rajada,
foram-se o chapéu e os sonhos...
Livros e papéis ao mar,
e as ondas levaram toda a poesia...
quebrando, em uníssono, ilusões nas pedras...
dissolvendo versos em espumas...
levando palavras ao vento...
tornando turvo o olhar...

Mulher na praia...
Palavras ao vento...
Perdia-se... na infinitude do mar...

Carolina Grant (23/01/2011).

sábado, 22 de janeiro de 2011

- Garçom, duas doses de Drummond, por favor... porque o co(po)ração está seco. - E agora, José?


Os Ombros suportam o Mundo.
(Carlos Drummond de Andrade)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas, na sombra, teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

*Os versos acima foram publicados originalmente no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.  Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78.
 
***


José
(Carlos Drummond de Andrade)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?

E agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio,
e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

***

José, para onde?

sábado, 15 de janeiro de 2011

"Vai, Carlos, ser gauche na vida..." ser anjo, ser pássaro, ser livre, ser vivo...


"Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam".
(A Hora da Estrela - Clarice Lispector)

Poema de sete faces
(Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

A Jornada... (ou “O véu e o desvelar” – Parte I).

Full Circle - Loreena McKennitt

Caminhou com passos inseguros, a princípio, porque não conhecia o caminho e não sabia muito bem onde deveria, poderia ou queria chegar. A paisagem onírica à volta inebriava, com seu cheiro verde de barro molhado. Caminho estreito, por entre as folhas e árvores compridas, da idade do universo e da criação, ásperas de sabedoria. Formavam um arco quase fechado, fazendo com que os raios de sol penetrassem suaves e fragmentados. O vestido branco tocava de leve o chão, como se voasse, e esvoaçava às costas, como se deixasse um rastro de sombra clara. Os cabelos, de um castanho escuro, quase preto, voavam ao doce sabor da brisa, ondulados e cheios, contrastando com a pele alva, cor-de-neve. Os olhos escuros atentos e sonolentos. Atentos, como num sonho misteriosamente atrativo... sonolentos como que embriagados. Seguia em frente. Os pés descalços, tocando a terra. Ouvia ao longe uma corrente d’água e podia sentir, sem ver, a sua pureza.

Caminhou, deleitando-se. Todos os sentidos em alerta. Sentia a brisa acariciar-lhe a face e os cabelos. Sentia o cheiro verde-amadeirado. Ouvia todos os sons vívidos, suaves, ásperos, sutis e agudos, repletos de vida e história. Via como se mergulhasse... via, como se voasse... via, como se tivesse acabado de nascer. Via, como se pudesse absorver tudo a sua volta. Via, como se quisesse sentir, cheirar e ouvir com os olhos. Via, como se olhasse. Apenas não falava, porque palavras não eram capazes de traduzir o que gostaria, nem tampouco eram necessárias. Comunicava-se, expressava-se, perfeitamente, com tudo ao redor, sem palavras.

Seguia. Mais alguns passos, agora, já firmes. Sabia, mesmo sem conhecer e poder precisar bem ao certo, o que lhe aguardava.

As folhas de alguns arbustos mais altos tentavam bloquear o caminho, mas seguia. Um pedaço do vestido branco ficou, como de lembrança do caminho por onde passara. A correnteza que se seguia adiante, longe das vistas, já estava mais audível. Podia ouvir e distinguir outros e novos sons, conhecidos e desconhecidos. Dentre eles... um som humano.

Virou à direita, seguiu. Passou por algumas pedras. Subiu, desceu. Machucou os pés. Mas andar era sempre um alívio. Sempre. Caminhar, lavar a alma, elevar-se. Mergulhar.

Desceu por entre as pedras. Uma pequena e belíssima gruta, no coração da floresta. Água límpida, azul-cristal, resplandecia e parecia iluminar tudo à volta. Na extremidade oposta uma nascente. A pequena correnteza, pensou. Desceu um pouco mais e aproximou-se do pequeno lago que se formava, sereno. Viu a sua silhueta refletida na água cristalina, quase firme.

Sentou-se.

Aproximou o rosto da água e tentou tocar o seu reflexo. A silhueta se desfez ao toque. A água parecia ainda mais fluida, como que feita da mesma matéria-prima do sonho. Evaporou-se e, ao seguir o seu vapor com os olhos surpresos, viu ao longe o que produzia o som humano.

Ele tocava a sua gaita calmamente, sentado do outro lado da margem, entre as sombras da gruta e o brilho-azul do lago. Absorto em sua música. Cabelos longos, escuros, presos. Olhos baixos.

No momento em que a brisa-esfumaçada do lago virgem subiu ao toque dela, seus olhos se cruzaram. Surpresa nos dela, serenidade nos dele. Ele a estava aguardando. Ela chegara, mas era preciso mergulhar e voltar para que conversassem.

A superfície líquida da água tornou-se gelatinosa, de repente. Prendeu-a. Puxou-a.

Um pequeno grito.

Uma troca de olhares rápida.

Um clamor nos olhos dela.

Um olhar confiante vindo dele.

Um mergulho para dentro de si. Ao encontro de si. Ela sabia. Era isso que a esperava. Só não sabia como. Para dentro do reflexo, sim, por que não?

***

Ela partira por um momento. Ele a esperaria. Só poderia conhecê-lo se conhecesse a si mesma. Conhece-te a ti mesmo. Ele aguardaria. Voltara à gaita. Uma música suave e repleta de história. Um mantra.

***

Toda a imagem se desfez como se acordássemos... até que ela esteja de volta... por detrás do véu... da longa jornada.


Carolina Grant
(15/01/2011)


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

"Colar de Carolina" (Cecília Meireles) - Um pouco de poesia menina, beleza pueril e sonora.


 Colar de Carolina 
(Cecília Meireles)

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
 
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
 
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.

(E as ondas vêm e vão nos versos de Cecília, as ondas de Carolina).


The dark night of the soul - St. John of the Cross, by Loreena McKennitt (Poesia Espanhola do Séc. XVI).

            Porque o amadurecimento existencial - a busca por completude, plenitude, transcendência - pode ser trilhado por vários caminhos e manifestar-se no amor, na fé, no espiritualismo, na arte (em geral), na literatura, na poesia...

              Eis um pouco da poesia espanhola do séc. XVI, imagética e repleta de simbolismos.


The Dark Night of the Soul
(Loreena McKennitt)

Upon a darkened night
the flame of love was burning in my breast
And by a lantern bright
I fled my house while all in quiet rest

Shrouded by the night
And by the secret stair I quickly fled
The veil concealed my eyes
while all within lay quiet as the dead

CHORUS
Oh night thou was my guide
of night more loving than the rising sun
Oh night that joined the lover
to the beloved one
transforming each of them into the other

Upon that misty night
in secrecy, beyond such mortal sight
Without a guide or light
than that which burned so deeply in my heart
That fire t'was led me on
and shone more bright than of the midday sun
To where he waited still
it was a place where no one else could come

CHORUS

Within my pounding heart
which kept itself entirely for him
He fell into his sleep
beneath the cedars all my love I gave
From o'er the fortress walls
the wind would his hair against his brow
And with its smoothest hand
caressed my every sense it would allow

CHORUS

I lost myself to him
and laid my face upon my lover's breast
And care and grief grew dim
as in the morning's mist became the light
There they dimmed amongst the lilies fair
there they dimmed amongst the lilies fair
there they dimmed amongst the lilies fair

Lyrics by St. John of the Cross*

* St. John of the Cross:
"Saint John of the Cross was a reformer of the Carmelite Order and is considered, along with Saint Teresa of Ávila, as a founder of the Discalced Carmelites. He is also known for his writings. Both his poetry and his studies on the growth of the soul are considered the summit of mystical Spanish literature and one of the peaks of all Spanish literature. He was canonized as a saint in 1726 by Pope Benedict XIII. He is one of the thirty-three Doctors of the Church. When his feast day was inserted into the General Roman Calendar in 1738, it was assigned at first to 24 November, since his date of death was impeded by the then existing octave of the Feast of the Immaculate Conception. This obstacle was removed in 1955 and in 1969 his feast day was moved to his date of death, 14 December. [...].

St. John of the Cross is considered one of the foremost poets in the Spanish language. Although his complete poems add up to less than 2500 verses, two of them - the Spiritual Canticle and Dark Night of the Soul are widely considered to be among the best poems ever written in Spanish, both for their formal stylistic point of view and their rich symbolism and imagery.

Dark Night of the Soul (from which the spiritual term takes its name) narrates the journey of the soul from her bodily home to her union with God. It happens during the night, which represents the hardships and difficulties she meets in detachment from the world and reaching the light of the union with the Creator. There are several steps in this night, which are related in successive stanzas. The main idea of the poem can be seen as the painful experience that people endure as they seek to grow in spiritual maturity and union with God. A year after writing this poem, in 1586 he wrote a commentary on Dark Night of the Soul with the same title. This commentary explains the meaning of the poem verse by verse".

Fonte: Wikipedia (grifo nosso).